sábado, 14 de outubro de 2017

Intertexto


Saul frisou que havia se acostumado, não se sabe se com a solidão do quarto pequeno, ou com a tristeza. Quem sabe os dois?
Fato é que nos moldamos às realidades.
Uma vez aprendi nas aulas de biologia que o ser humano "se adapta ao meio". Seja frio extremo, calor extremo, falta d'água, abundância dela... a gente acostuma.
A gente acostuma... a dor do luto nunca passa, mas a gente acostuma. A gente acostuma com ausência, com solidão, com o vazio do quarto, com a nossa única e verdadeira companhia.
A gente se acostuma com o café quente, com a chuva que cai la fora, com o clima seco, com as folhas ao chão, depois com as árvores floridas...a gente acostuma com as estações da vida.
A gente se acostuma ao amor
e a falta dele.
Não há problema em se acostumar. Seria o costume/hábito nossa maneira de se proteger da não-zona de conforto?
Talvez.
Sair do quarto escuro e enfrentar a luz do dia, o sol, depois de estar adaptada seja la ao que for, arde as vistas, ofusca os olhos, e carece mesmo de proteção.
Levo as mãos ao rosto a fim de tapar os raios solares que invadem sem nem pedir permissão.
Mas a gente acostuma.
Se expõe ao sol um pouco a cada dia pela manhã, e acostuma também com ele.
Que bom que a gente acostuma! Menos um motivo pra sofrer não é mesmo?
Acostumar é aceitar as coisas como são já que não se pode mudá-las.
Me acostumei.
Acostumei com a minha presença, com as ausências, com a solidão que me faz companhia, com a tristeza... a gente acostuma!
Saul e eu poderíamos sentar qualquer dia em um café, acender um cigarro pra falarmos sobre nossos costumes, sobre Raul e seus costumes também.
Elizabeth é metódica, e convive bem com seus costumes.
"Não é triste? perguntou.
Saul sorriu forte: a gente acostuma."
Caio Fernando Abreu Aqueles Dois