terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Dual





Apegada à números pares, era tudo dual em sua vida - quando não demasiado.
Na sua sala eram duas poltronas, em seu corredor dois tapetes e também na beirada de sua cama. Quatro travesseiros...dois quartos, havia o de visitas, mas estas nunca apareciam. Mas ela sempre preparava, para caso um dia, acontecesse o inesperado.
Duas toalhas cinzas penduradas no box do banheiro, uma estava para secar, a outra esperava ser umedecida. Dois jogos de toalhas de rosto, dois chinelos na beirada do box, dois shampoos, dois sabonetes, e na pia, duas escovas de dentes.
Não percebera todos esses pares no apartamento, talvez porque ela fosse singular e não plural. Porque ela fosse ímpar e não par. Aqui matemática e gramática normativa dão as mãos, e é o único par que possa trazer significado ao texto.
Porque ele ta vazio, assim como o apartamento.
Na cozinha, dois pratos na pia: um está esperando ser lavado, e outro esperando ser utilizado. O macarrão de ontem grudou e já não da mais pra comer. Lixeira tem uma só. Não carece de duas.
Na geladeira dois litrões gelando, na adega duas garrafas de um litro de vinho tinto seco. Sob a mesa duas taças, uma está suja do vinho da noite anterior em que bebera sozinha.
Dois cinzeiros sob a mesinha de centro da sala, apenas uma bituca de cigarro ainda soltando sua última fumaça - ou último suspiro.
Mora sozinha, mas coragem ela tem por duas, por três, por quatro. Se joga, mergulha fundo em taças de vinho ou em corações rasos, não importa.
O vinho é seco, o café é forte sem açúcar, e chocolates amargos dentro da bomboniere sob o balcão que separa a cozinha da sala.
À meia luz todos os pares somem, e o que fica é a unidade de cada utensilio.
Acende um cigarro, sentada em uma das poltronas, toma uma garrafa de seu vinho tinto seco - que é pra tingir de vermelho o interior, que assim como as toalhas e as paredes são cinzas. (e ela é Fênix, disseram)
Agora são duas bitucas no cinzeiro.
No mais, à meia luz não tem plural, só singular. Não tem pretérito mais que perfeito, mas imperfeito... tampouco futuro do pretérito.  À meia luz, singular e ímpar dão as mãos para lhe ser companhia junto à taça de vinho.
No banheiro, segue as toalhas e os chinelos e as escovas...mas à meia luz eles nem fazem diferença.
De "pileque", o banho vira a melhor opção do singular ímpar, presente.(!) Aqui carregado de outra semântica - mas sempre gramática - normativa ou funcional. Os números nunca fizeram diferença mesmo. Mas o presente sim!
O presente é indicativo e reafirma que não há vocativo, tampouco aposto ou subordinação do sujeito.
Bom, algumas regras não mudam, mas nós somos passíveis de transformação...então, mais um vinho pra fechar com par.
Fato é que aqui gramática e matemática deram as mãos, não para serem um casal - longe disso, mas pra reafirmar a solidão dos números ou dos vocábulos/sentença.
Esta já foi dada: serás sempre ímpar e singular!
Não se sabe ainda se isso é bom ou ruim. O tempo dirá!

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2018

efêmero


Elizabeth, sagaz que só, inteligente, já lera muitos livros, muitos teóricos...
Percebeu que teoria nenhuma foi capaz de proporcioná-la entender a própria vida, ou analisar a solidão do apartamento à meia luz.
Ela já não sabia se era dia ou noite, perdeu as contas de quantos dias estava trancada ali dentro. Nem é boa com números mesmo, não faz questão de contá-los.
Conhecera à custa da própria carne o que eles chamam de liquidez...
Viu seus músculos e suas forças se esvaírem como água que escorre pelo ralo, ou como a enxurrada de chuva forte.
Viu suas relações débeis indo embora como um barquinho de papel que é colocado sob o leito de um rio furioso.
Efêmero... tudo era efêmero, mas Elizabeth é uma estaca fincada em solo firme, que vendaval nenhum leva.
Por isso ela vê tanta coisa sendo levada. Elizabeth fica.
O que tem de concreto são as paredes do apartamento, no centro da cidade, decorado por ela. A personalidade dela está impregnada em cada detalhe... e é nisso que ela se apega.
Tolice pensar que se trata de uma mulher fraca. Há que se ter muita força para ver tanta coisa que um dia lhe foi importante ir embora com a enxurrada.
Sentada em seu sofá, viu a liquidez, que Bauman já havia falado, cicatrizado em sua pele.
A marca estava lá. Única coisa que não lhe fora tirado.
Outras tempestades virão, e levarão de si outras coisas que lhe são importantes.
Importa que esteja fixa em solo firme.
A liquidez pode chegar, pode marcar, mas não pode levá-la.
Chamam isso de evolução, mas  ela prefere o caminho inverso se assim o for.
De efêmero já basta a vida!